domingo, outubro 10, 2010

Imagino que tentaria entrar naquele hospital, correndo das enfermeiras que o tentariam conter, entraria naquele quarto branco e sufocante e o veria ali parado, aos últimos suspiros, a pele já seca, como que se decompondo. E diria, feito doente rouco: "Te odeio". E o corpo na maca, meio que sem saber se é vivo ou é morto ou os dois, mostraria em sua face dois lábios que se juntariam e se abririam para perguntar, todo inflamado: "Mas, por quê?". E responderia, rápido e sagaz, como que já tivesse ensaiado no caminho de casa para o hospital, repetindo louco nas ruas imundas da cidade gritante: "Porque você disse que viveria para sempre, e mentiu." Então, tal qual floreio boêmio, o quarto se encheria com um cheiro embriagável de perfume barato e vinho azedo, e os dois presentes naquele não-lugar teriam a indubitável certeza de que o Fim rapidamente estaria chegando, quebranco a maçaneta da porta branca e invadindo o quarto, invadindo a maca, invadindo a carne, invadindo a alma. Pois, então, o corpo deitado, cheio de tristeza e palidez, diria, rápido e (trans)lúcido: "Cala von que vonervo du vaica". E o outro, em pé, com o âmago sangrando, diria: "O que significa?". "Eu te amo, em uma língua morta". Então ambos sorririam, os dentes amarelos do corpo deitado e os dentes esbranquiçados do corpo em pé a mostra, as lágrimas já cansadas de sair, invadindo o interior dos corpos, inundando os órgãos e as veias. E uma tela mostraria linhas verdes, pedaços rasgados de arco-íris, se acalmando e um barulho estranho e constante rasgando os tímpanos. E o corpo em pé, o corpo do saudável, do vivo, do vívido, diria, em seus lábios finos e ressecados, de homem que já sofreu demais: "Você vai viver para sempre". E viveu.